fronteira livre: histórias do nós
Fronteira Livre foi um projeto colaborativo desenvolvido para a 11ª Bienal de Arquitetura de São Paulo em parceria com Alexander Eriksson Furunes . O processo foi realizado através da colaboração com 8 membros do CAMI (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante) da Bolívia, Peru, Angola, Haiti e Congo.
Foram 10 dias de oficina entre os dias 10 e 20 de outubro de 2017. A metodologia da dinâmica dividiu-se em 4 momentos. Iniciamos um processo de aproximação da temática, contextualizando as fronteiras enfrentadas atualmente pelos milhares de imigrantes que chegam ao Brasil. Em um segundo momento, realizamos uma imersão nas narrativas individuais dos participantes (histórias do eu), e, a partir delas, identificamos as narrativas coletivas (histórias do nós). Após 3 dias de dinâmica se chegou nas mensagens síntese – pontos de convergência das narrativas individuais e coletivas – que o grupo desejava comunicar: 1) criar coragem para caminhar 2) deixar medo de lado 3) estamos aqui nos escutem 4) precisamos conhecer nossos direitos 5) ter força para continuar 6) sonhar: esperança amanhã. Por meio de tradução intersemiótica, que consiste em interpretar palavras e sentimentos e traduzi-los em meios não verbais, se propôs traduzir conceitos subjetivos como: invisibilidade, medo, voz, limite, rompimento, que transformaram-se em padrões geométricos e cores, estampando 6 faixas de 6mX0.75m. O processo resultou na intervenção nas 6 estações da linha vermelha do Metrô de São Paulo.
Abaixo as histórias do nós, desenvolvidas durante a dinâmica:
CRIAR CORAGEM PARA CAMINHAR
estação barra-funda
Nós criamos sempre coragem. Coragem para começar uma vida sozinho, sem família, sem ninguém. Viemos de bem longe. Morar com pessoas novas, que não conhecemos. Muita coragem. Criando um novo ambiente. Coisa muito dura, muito difícil. Como se fosse uma pessoa nascida novamente. Deixou tudo que era seu lá trás. Tudo diferente até a comida.
Enfrentamos a coragem de romper com: saudade, desapego, cultura, religião. Temos que quebrar tudo para poder sair. Tínhamos as especificações de trabalho, deixamos para trás nossa preparação acadêmica e títulos profissionais. Lá nós éramos doutores, licenciados, maestros, aqui nós somos simplesmente você. Procuramos ser alguém. Como ser humano somos seres de direito em qualquer lugar do mundo. Quando chega aqui, se sente uma pessoa insignificante. A força é tão grande, que acabamos vencendo essa insignificância. O sentimento é o mesmo. A cada dia, amanhecemos procurando mais coragem. Não tem outra resposta que não ter coragem a todo segundo. Estamos vivos, estamos fortes. A luta pela sobrevivência está no ser humano, luta pela vida, pela justiça. É humana. De onde tiramos coragem para cuidar de nossos filhos? Não temos família, não temos ninguém. Nossos filhos têm que comer. Amanhã, será que vou comer? Será que vou ter dinheiro para fazer meu mercado? Não temos salário fixo. Coragem, sim ou sim tem que estar conosco. Principalmente nas mulheres. Quem vai acompanhar nós imigrantes?
DEIXAR MEDO DE LADO
estação república
O primeiro medo começa no meio da viagem, quando se vem de ônibus, e na primeira parada entra um policial, temos a sensação de que estamos fazendo algo errado. O principal medo vem quando não falamos a mesma língua. No mercado ou no açougue não sabemos pedir, e quando erramos, todos no estabelecimento riem de nós. temos medo de nos expressarmos. Temos medo de nos expor. O medo te fecha, vê que a janela está fechada. Temos medo de não termos todos os documentos que as autoridades pedem. Temos o medo de se perder sem conseguir chegar aonde queremos ir. Nossas mãos, nossos gestos nos ajudam a comunicar além da língua. Quando não se sabe das coisas, fica com medo. Os funcionários não são capacitados para lidar conosco. A informação e os direitos estão ai. Quando nós temos argumento, temos informação e temos a necessidade: quebramos o medo. Deixar esse medo, e saber que podemos falar. Tem que ser educado, mas saber pedir para ser do jeito que nós queremos. Depois que vai deixando o medo, vê que tem muitas portas abertas. Tem muitos caminhos. Passa um problema, passa outro problema e vai saindo. Deixe de lado o medo, por você, e veja que do lado de fora tem melhores coisas que podem ser aproveitadas.
ESTAMOS AQUI, NOS ESCUTEM!
estação sé
Estamos aqui, e agora pertencemos a sua família. Não nos olhem com indiferença, não queremos tirar sua moradia, seu emprego. Pagamos o imposto também. Trabalhamos para que cresça esse país também. Somos seres humanos, somos iguais vocês, e vocês são igual a nós. Estamos juntos. Queremos sensibilizar as autoridades, que não nos escutam, não nos acolhem, não nos respeitam. Somos iguais. O que tem dentro de nós: sangue vermelho, coração, esqueleto. Direitos iguais. Queremos a mesma condição. As autoridades não se dão para os imigrantes. Não conhecem. Somos iguais. Não nascemos nesse país, mas vivemos aqui. O imigrante não é o terrorista, não é quem tira dinheiro, não é aquele refugiado e ponto. Viemos de fora mas estamos aqui, vivemos aqui. Nossos filhos também passam muitas experiências.Filhos de imigrantes ficam confusos, não sabem da onde são. Brasileiros? Peruanos? Bolivianos? Chilenos? Cubanos? Congoles? Haitiano? Muitos acham que não é possível ter dupla nacionalidade. Para as autoridades, que entendam, conheçam e saibam, nos compreendam que somos seres humanos como eles. As autoridades têm que cumprir seu papel, tem obrigação. Nós temos que nos reconhecer, quem sou eu, de onde eu venho. Cada um tem uma história, mas a história do nós é a que predomina.
Como chegar a autoridade? Não vá jogando pedras, questionando. Sensibilize-as. Temos muitos problemas quando nos sentimos donos da verdade, porque já vamos para o confronto e não dialogamos. Para sensibilizar as autoridades, temos que dialogar. Queremos diálogo, respeito, reconhecimento.
PRECISAMOS CONHECER NOSSOS DIREITOS
estação brás
Quando não sabemos nossos direitos nos submetemos à situações constrangedoras, e de descaso. Permitimos que tirem vantagem de nós e da nossa situação. Já perdemos nossos filhos por não sabermos nossos direitos de saúde, ou por não entendermos o que era dito. Se não sabemos nossos direitos qualquer pessoa é capaz de nos obrigar a fazer o que não queremos fazer, porque não temos informação para argumentar contra aquilo que sabemos que é errado. Principalmente quando falamos com as autoridades, são elas em quem acreditamos que podemos confiar. Depois que passamos por uma situação em que não nos passam a informação correta, aprendemos que devemos questionar sobre aquilo que não sabemos, ou que não entendemos. Centros de apoio a imigrantes podem ser locais de informação. Cabe à nós mesmos procurar nos informar e saber nossos direitos, pois o conhecimento nos dá força. Quando sabemos nossos direitos, podemos colocar os limites. A informação nos dá argumento e coragem, e assim temos as ferramentas para enfrentar.
TER FORÇA PARA CONTINUAR
estação tatuapé
Tem momentos em que perdemos a esperança, nos sentimos sem alternativas. Encontramos na família, no trabalho digno, na moradia digna, uma força. A persistência, a força, o sonho que se tem nos move. Existe momentos em que achamos que está tudo perdido. Olha para um lado problema, olha para o outro lado, problema. Principalmente pelo que você enfrenta, que o coloca para baixo. Falam que você não vai conseguir. Não pode sair, não vai conseguir. Chora, chora tanto e pensa: não tem saída. Cansado de chorar, se procura saída. Surge força interior que a gente tem. Tenho as mãos, tenho os pés, procuro serviço, faxina. Vem de dentro, eu posso resolver. Tenho que pagar dívidas, aluguel, mas sai a força de dentro, procuro.
É preciso procurar, tem que sair para saber como são as coisas. Se não tem oportunidade para as pessoas virem do seu lado, você mesmo sai e vai do lado das pessoas. A gente tem que ter força para sair em frente e procurar saídas, da forma que pode procurar. Temos que nos ressignar a realidade de agora. Aceitar nós como costureiras, faxineiras, com o que nós temos aqui. Se ficar relembrando as coisas, se põe triste, que podia ser melhor. Amanhã você fica doente. Passando tudo as coisas que a gente passa, até ri. Porque eu estava chorando e não tinha saída. Olha o tanto de oportunidade que tinha. Temos que criar novos ambientes, fazer novas famílias. Uma vez que você viu que aquele esforço que você fez deu certo, você vê que a barreira não é tão complicada. Pensa com mais força que vai dar certo. Eu passei, e continua a passar. Hoje passei isso, amanhã não vou passar. Vai criando uma casca.
SONHAR: ESPERANÇA AMANHÃ
estação corinthian-itaquera
Apesar de todas as dificuldades, moramos aqui e estamos aqui. Temos sonhos? Como é esse sonho? Chega um momento em que já temos mais claro o que queremos. Temos também a realidade. Sonhamos que nosso país é maravilhoso, podemos sonhar em abrir um restaurante, conseguir um emprego, família, uma vida melhor para nossos filhos. Sabemos que nunca voltaremos atrás. Os sonhos tem efeito dominó, e se começa a trabalhar por esse sonho. Não queremos que nossos filhos passem pelo que passemos. Queremos o melhor para nossos filhos. Todos temos sonhos, impossível dizer que alguém não tem. Viemos em busca de uma vida melhor, ou fugindo de uma vida ruim. Queremos ver o sorriso do nosso filho e a tranquilidade e o sorriso nosso. Queremos sentir conforto, satisfação, paz. Nossa ambição nos mantém vivos a cada dia. A mirada final no horizonte é ser mais feliz: ter uma melhor vida, moradia, casa. Esse sonho é humano, natural. Para conseguir o sonho é um esforço, sacrifício, se organizar, batalhar. Queremos ver os rostos das crianças felizes e chorar de alegria.
Para saber mais sobre o projeto:
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.208/6776
Intervenção leva debate sobre imigração e fronteiras ao metrô de SP