formas de afeto – conversa com o coletivo feminista carmen portinho
No dia 13 de novembro de 2019 participei de uma roda de conversas sobre a produção feminina no campo da arquitetura após a exibição do curta metragem AFETO, das diretoras Gabriela Gaia e Tainá Medina. O evento se deu na escola da cidade, no encerramento do ano do seminário de cultura e realidade contemporânea a convite do coletivo feminista Carmen Portinho.
Assistimos o curta AFETO, que, com uma narrativa que vai de linguagem documental à experimentação, sci-fi e terror, nos mostra de uma maneira quase onírica as memórias e os corpos femininos no espaço urbano. Com a sobreposição de imagens históricas da construção de metrópoles brasileira, o filme questiona imparcialidade e o papel social das mulheres nas construções das cidades.
Após a exibição, rolou uma roda de conversas com a diretora Gabriela Gaia Meirelles em conjunto com as arquitetas Adriane de Luca, Julia Park e Gabriela de Matos. Em apresentação, mostrei a importância de nossas produções pessoais e afetivas. Historicamente, mulheres são lembradas como frágeis e passionais, como aquelas que agem em detrimento de seus sentimentos como sendo algo negativo e inferior à produções masculinas.
Na época, eu estava lendo o livro I love Dick, da escritora e artista Chris Kraus, onde ela expõe sua obsessão pelo antropólogo Dick Hebdige, amigo de seu marido também intelectual Sylvére Lotringer, em uma narrativa quase totalmente autobiográfica, passando pelas ‘contradições do feminino’, crises de meia idade e um casamento falido. A relação criada entre Chris e sua obsessão fez com que ela escrevesse cartas compulsivas ao Dick, as transformando em um projeto: um livro empoderado, onde revela a potência que nossas obsessões possuem. Esse livro foi um novo passo para o feminismo, mesmo sofrendo severas críticas quando lançado em 1997 por ser uma “inadequação do desejo feminino” exposta ali. Porém, no início dos anos 2000, ele foi bem recebido por mulheres artistas e escritoras que viram no livro um potencial transformador e hoje se transformou até em uma série de tv.
A partir disso, resolvi levar alguns recortes e colagens que realizo como um diário pessoal. Ali é onde consigo condensar sentimentos, obsessões e vontades, que acabam se transformando em um imaginário gráfico e ‘palpável’. Além de servir como esse lugar particular, me debruçar nisso me ajuda nos meus processos criativos enquanto arquiteta e designer. Essa prática, de colocar o sentimental seja qual ele for sobreposto em uma produção, fortifica a ideia de que é importante termos afeto pelo que sentimos enquanto mulheres. Se isso faz ‘parte’ de quem somos, porque não enaltecer?
Em seguida ouvimos a fala da Adriane de Luca, arquiteta com uma trajetória importante onde conquistou lugares geralmente masculinos na produção arquitetônica como coordenadora de grandes projetos no Brasil e em Portugal. Adriane comenta sobre a importância de reconhecermos todxs que trabalham ao nosso redor, a importância de uma ficha técnica completa, até para uma análise crítica em relação a quantidade de pessoas e de mulheres nessas produções. Ela também tem formação em dança contemporânea, contato improvisação, o caminho do canto e humana harmonia. Integra, desde 2017, o grupo de estudos em dança e performance 16 mulheres e 1⁄2, coordenado pelo núcleo cinematográfico de dança. Ela contou um pouco sobre como sua relação com a dança e performances a transforma, lugar onde ela se completa enquanto mulher, onde usa seu corpo ocupando os espaços públicos como uma forma crítica, política e de resistência. Também foi professora de projeto na escola da cidade.
A Julia Park nos mostrou seu projeto extremamente sensível e pertinente, o mitchossó, um coletivo feminista coreano que realiza algumas ações que demonstram as dificuldades de ser mulher e filhas de pais coreanos, uma cultura rígida e fechada. O mitchossó é um lugar de acolhimento entre mulheres que nunca antes haviam se aberto sobre suas aflições enquanto descendentes de coreanos. Esse é um projeto que também vem de afetos. Além disso. Julia também foi professora da escola da cidade e realiza maquetes no imita arquitetura.
Depois veio a fala da Gabriela de Mattos, arquiteta e urbanista autora do livro e do projeto Arquitetas Negras e vice-presidente do IAB-SP. A Gabriela falou visualmente através de gráficos, as discrepâncias entre mulheres brancas e negras, desde escolaridade à economia. Imagens às vezes dizem muito mais do que palavras, e nesse caso, as informações que ela nos mostrou foi importante para termos noção do que é ser uma mulher negra no Brasil, e principalmente nas faculdades de arquitetura. Como ela mesmo disse, foi preciso mapear essas mulheres nas universidades. A fala dela levantou a voz de uma aluna que compartilhou com todxs em alto e bom som o que é ser a única aluna negra da escola da cidade. O projeto da Gabriela é importante, pertinente e estimula as falas.
Por fim, conversamos com a diretora do curta, Gabriela Gaia Meirelles, sobre esses afetos que temos quando nos expomos enquanto mulheres e nossos ofícios. Não falamos de nossa produção enquanto arquitetas, e sim, nossa produção e luta enquanto mulheres – sempre marginalizadas.
Agradeço a Fernanda Galloni, Anita Solitrenick, Amanda Klajner, Luisa Carrasco, Luciana Fernandes, Giovana Tak, Marina Sznajder, Letícia Fernandes, integrantes do coletivo feminista Carmen Portinho pelo convite e por unir tantas mulheres potentes e inspiradoras, cada uma com sua produção, todas embasadas nos afetos. Que o coletivo voe cada vez mais alto, dando voz a nós mulheres que sempre somos caladas dentro e fora da arquitetura.
imagens cedidas pelo BAÚ, acervo fotográfico da escola da cidade