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livro de receitas familia levy

A família levy recebeu uma surpresa na sua última ceia de natal, em formato de livro. Encomendados pela tia cecilia, que reuniu e digitalizou os livros de receita antigos da família, o novo livro tem a seleção das melhores, com anotações e sugestões de várias gerações.

Recortes de revistas e cadernos da minha tia avó – da tia clara que ilustravam as páginas dos livros antigos – são o partido para a colagem que é capa da nova edição. O miolo em papél pólen recorda as páginas amareladas dos originais e o marcador em cetim ajuda a não perder a página. A lombada aparente é revestida de tecido vetex. A diagramação é de Christian Salmeron, a tiragem foi 200 unidades.

Meu querido tio gabriel escreveu o texto de introdução:

SANTA CEIA
por Gabriel Levy
Em todas as culturas há algo de mágico no ato ritual de comer. Todas as religiões criaram ritos, regras, jejuns, alimentos que não podem ser misturados ou outros tipos de interdições, datas para determinados alimentos, etc. Isso mostra o quanto esse momento de nutrição do corpo e da alma deve ser vivido respeitosamente. No candomblé as “comidas de santo” são tão importantes quanto os cantos e rezas: não há festa que não conte com uma mesa farta com alimentos escolhidos e temperados de modo a satisfazer o gosto particular de cada Orixá. O Judaísmo tem uma série de preceitos na Torá judaica em relação à comida casher, as refeições do Shabat e das grandes festas. Na história fundamental do budismo Sidarta Gautama, o “Buda histórico”, depois de anos de privações, só atinge a iluminação após se permitir comer uma tigela de arroz com leite. O Alcorão estabelece regras para o abate de animais e proíbe a carne suína e de répteis e estabelece jejuns importantes como no Ramadã onde só se come depois do por do sol.
Na Bíblia cristã, além da milagrosa multiplicação dos pães e peixes que alimentaram milhares de pessoas ou da
maravilhosa transformação de água em excelente vinho, temos muitos momentos em que Jesus está compartilhando refeições, sendo que a última, a Santa Ceia, deu origem à celebração da Eucaristia ou Comunhão realizada pelos cristãos no mundo todo até os dias de hoje e é uma das cenas mais retratadas na história da Arte desde a antiguidade romana e bizantina, passando por Leonardo da Vinci até chegar a Salvador Dalí.

Para a nossa família a mesa sempre foi não só um momento de compartilhar os alimentos (ou disputá-los) mas também um verdadeiro “ponto de encontro”.  Se cada um dos 11 moradores da casa resolvesse comer em uma hora diferente, a logística da cozinha seria caótica e isso seria intolerável na nossa cultura doméstica de batalhão com hábitos de acampamento de exército. Então a hora da refeição deveria ser respeitada por todos. E a grande mesa de refeições se tornava um local sagrado, onde sempre se fazia uma oração  antes das refeições e, seja na cidade ou no sítio, estava sempre abençoada por uma imagem da Santa Ceia.  Mesmo sem nenhuma visita já éramos 11 pessoas à mesa: quase tantas pessoas quanto no quadro de Cristo e seus discípulos! Essa poderosa energia coletiva e a alegria comum de saciar a fome e a sede tornava esse ritual um poderoso momento de união e convívio que dificilmente se repetiria em outras horas do dia (talvez se repetisse, um pouco, no momento coletivo de assistir TV depois do jantar mas aí, todos apinhados, focávamos na telinha e não no convívio).

Então, nas refeições, entre a exaltação de um sabor e uma disputa por bifes a família toda se informava dos acontecimentos cotidianos: novidades e lembranças, notícias boas ou ruins, elogios e repreensões, piadas e agressões, segredos e revelações, conviviam lado a lado com as saladas, cozidos, massas, frutas e doces. A simples e pura vida…E é claro que para uma família numerosa – e que se orgulhava disso que nos tornava “especiais” de alguma forma – havia necessidade de uma cozinha praticamente industrial cujas grandes panelas começavam a fumegar bastante cedo para dar conta de preparar tudo que fosse necessário. Dos vários armários, da despensa e geladeira saiam os incontáveis produtos, legumes, latarias, carnes etc. todos comprados em quantidades de atacado. E comandando essa logística toda estava nossa mãe, Dona Célia, que, contrariando qualquer lógica, conseguia dar conta de cuidar da casa, da cozinha, das roupas e ainda gerenciar nove filhos com idades e personalidades diversas e, portanto, necessidades e desejos diversos. Um exemplo:  quando eu era pequeno – o sétimo de nove filhos – no dia de nosso aniversário tínhamos direito a um cardápio especial que podíamos escolher. Eu escolhia nhoque e pavê de amendoim!  Conseguir cuidar de tudo isso ao mesmo tempo não parece mesmo um milagre?

E é essa força das mulheres que, apesar das inúmeras dificuldades, conseguem encontrar prazer em criar prazeres para todos, é essa força que se revela nesse simples livro de receitas. Mulheres de várias origens que trocaram seus saberes por séculos. Como dizer com assertividade quais receitas vieram da Suíça ou da Itália ou de Portugal ou de Minas Gerais? Podem ter vindo das nossas avós, ou das avós das nossas avós… É uma cultura feminina -quase uma sabedoria oculta – que atravessa gerações e, passando de mães para filhas, chega até nós na forma desse precioso Livro de Receitas da Família Levy. Agora podemos ter acesso aos segredos culinários escondidos por trás desses pratos deliciosos e temos a possibilidade de realizar nossos desejos de prová-los todos. Que esse conhecimento se divida da mesma forma que, em toda a história da humanidade, se compartilhou o pão.

Em tempo: eu tenho em minha cozinha um pequeno quadro da Santa Ceia e uma escultura de São Benedito, padroeiro dos cozinheiros. Apesar da globalização, da robótica, do cyberespaço e da conquista de Marte, comer continua sendo sagrado…